quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A PEDRA


Se as pedras falassem o que teriam para nos dizer? Quais as emoções que nelas poderíamos encontrar? Teriam segredos recônditos? O que nelas realmente existe?
 
Sei que existo porque sinto as alegrias, as dores, as emoções, mas julgo que ninguém sabe que aqui estou.

Desde que me conheço como pedra que estou aqui nesta rua de calçada portuguesa, como lhe chamam os que por aqui passam. Mas nem sempre me sinto portuguesa: não posso falar a língua de Camões, não posso comer o cozido à portuguesa (que dizem que é muito bom!). O que será o sabor? Enfim, nunca o saberei… Não posso votar em partidos políticos, não sei o que são férias, não posso gritar, não posso rir, muito menos chorar …e tantas vezes me apetece!

 Mas sirvo para me pisarem, todos os dias…

De manhã, já estou habituada ao frenesim do caminho para a escola das crianças, dos pais a correrem para os trabalhos, das mulheres que se arranjam todas, para ver se é nesse dia que encontram alguém que goste delas, dos homens que vão descobrir se é nesse dia que encontram a liberdade.

O que me sufoca são os viciados, que teimam em atirar-me uns cigarros queimados e, como se não bastasse,  ainda os esmagam em cima de mim. Não sabem que também me preocupo com a aparência, que apesar de ser preta e escura tenho alma, sou diferente apenas na cor, porque sou igual às pedras brancas, às cor-de-rosa, e até às amarelas.

São uns egoístas, sem coração!

Sei que estou a ficar gasta, porque não sou da mesma altura das pedras que estão ao meu lado e, em breve, serei substituída, mas por enquanto ainda aqui estou e cumpro a minha função como as mais novas.

E mesmo quando nas tardes quentes de Verão me bate o sol, horas e horas seguidas, eu tenho de aqui estar e tento não me queixar, dizem que é mau ser uma queixinhas e então guardo tudo para mim!

Às vezes deveria ser diferente e colocar-me em posição de fazer cair a Maria, que com os seus saltos altos me pisa, e mostra a perna e o que está no fim dela ao Francisco, marido da sua melhor amiga, e nem se incomoda comigo, todos os dias às 2 horas da tarde aqui se encontra com ele. Mas nunca consigo ser assim má!

Quando chega a noite, tudo muda: aparecem uns cães vadios à procura de restos; às vezes tenho a sorte de não levar com a sua urina e já me sinto um pouco feliz mas, outras vezes, fico encharcada toda a noite, sem poder fazer nada!

Quando chega o Manuel, e não está bêbado e adormece, é uma alegria porque fala comigo, conta-me as suas histórias de quando era criança, tinha pais, tinha felicidade…. E até me diz que sou a sua única amiga, o que me dá uma certa alegria, e o mais engraçado é que me quer levar com ele quando morrer, mas não sei se acredito nisso, porque ninguém me vai tirar daqui por causa dele, e até duvido que alguém o leve para outro lugar, ninguém repara que está aqui, acho que poucos sabem da sua existência, no Natal, ainda aparecem cá umas vozinhas simpáticas com conversas da treta e até lhe dão comida e cobertores, mas ao longo do ano ninguém lhe diz nada.

O Manuel para mim é um senhor, gosta das estrelas, do sol… só fala contra o frio, mas sem grande revolta, diz que o que em tempos viveu lhe encheu a alma e vive de lembranças do passado.

Quem me dera ser assim…

Espera… qualquer coisa está a acontecer ao fundo da rua… estão a arrancar as outras pedras… e eu? Ai para onde vou?

Eu não sei se quero ir aí?

Por favor quero pensar nisso, eu já estou habituada… e o Manuel? Sou a sua única amiga.

Eu sou desta rua, eu sou daqui, conheço esta gente, a minha função é aqui… não, não me levem, por favor oiçam-me só desta vez…

Conheço estes sons, o cheiro desta rua, as gentes desta terra, conheço o sentir, as palavras, as expressões, os hábitos… Sou preta, sou velha mas sou daqui desta rua de Portugal, faço parte desta história, não quero ir para outro país, ou outra terra, ou outro lugar, não me obriguem a ir embora, não, não me levem eu quero estar aqui, eu sou daqui, eu quero morrer aqui, eu quero morrer com esta terra e neste lugar… Manuel…