quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Ao meu pai


Reconheço a sua espécie de assobio, esteja onde estiver, sinto o seu timbre, a sua musicalidade, decifro o seu estado de espirito a qualquer instante.

O seu jeito de caminhar, com os braços cruzados, ou com as mãozinhas nos bolsos.

Como que um odor presente em mim, o cheiro do meu pai é incomparável, pergunto-me se esse sentimento virá dos tempos em que repousava no berço. Gostava que esse perfume me acompanhasse sempre, para que a segurança caminhasse lado a lado, amarrada às minhas passadas.

Segundo a minha mãe foi ele quem me ensinou a dar os primeiros passos, o que tem a sua graça, pois ainda hoje continua a segurar-me os braços e a encaminhar-me para as diversas estradas da vida. 

Fecho os olhos e sinto-o a pegar-me às cavalitas e a colocar-me na cama, junto com a minha irmã, a tapar-me com cuidado. Renasce em mim o calor da proteção, das noites tranquilas da infância, em que a única preocupação era encontrar nos sonhos as princesas da imaginação.

Sinto o vento quente a bater-me na cara, e a alegria de andar de mota, sentada entre os seus braços, com as pernitas encostadas ao depósito de uma Casal 2, qual pássaro azul a voar pelos oceanos, experimento novamente a sensação de planar pelo sol quente de Verão.

Encosto-me ao seu ombro e revejo-o a tratar-me cuidadosamente das inúmeras feridas, resultado de incontáveis quedas. Esteve sempre lá para me levantar, munido de Betadine, Mercúrio, álcool e o suave algodão, apetrechos que sempre o acompanharam, o meu enfermeiro 24 horas, sem feriados, férias, dias santos ou folgas.

Desde sempre fui intolerante à dor, qualquer picada de inseto era motivo de uma enorme gritaria, e o que eu sofri com dores de ossos. As noites eram intermináveis pesadelos, como não tinha o que me distraísse, gritava com toda a força, com a boca bem aberta (e não era pequena), calmamente o meu pai massajava-me o corpo com pomadas, pomadinhas e uma panóplia de mesinhas, que me ajudavam a serenar a dor.

Ainda o oiço nas cantorias matinais de Domingo, a toda a força imitava o Pavarotti, o que me enervava aquele ruidoso despertador, e o que me apertam as saudades da sua sonante alegria que agora relembro.

A expressão facial quando se enerva ainda continua a mesma, basta olhar para ele que sei exatamente quando algo o incomoda.

Quando era miúda, adorava as caixas de bolachas sortidas, principalmente as embrulhadas em papelinhos de prata coloridos, era capaz de me sentar ao lado da caixa e só terminar quando acabassem todas, ignorando se os outros teriam a hipótese de as saborear. Bastava olhar para a sua expressão que descodificava logo a mensagem, nunca percebi como é que ele fazia aquilo, pois eu era efetivamente uma traquinas, sem grandes fitas, eu parava com as atitudes menos próprias. Nesse ponto acho que o meu pai poderia dar formação aos papás de hoje, que deixam as suas crias a berrar desalmadamente e fazem asneiras debaixo das suas barbas, sem mexerem uma palhinha que seja.

As saudades que eu tenho de lhe sentir a mão tocar no alto da minha cabeça, e a agarrar-me o ombro para acalmar, as saudades que tenho dos anos em que muitos faltavam para viver sob a sua mão que me amparava todas as quedas.