sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Idade da Inocência


Na idade das traquinices vivida nos anos 80, os dias passavam em alucinantes aventuras.
Numa aldeia do Norte do País as tardes de Verão passavam a voar.
Logo pela manhã e depois de um pequeno-almoço tomado a correr com a minha mãe sempre atrás de mim a dizer: “come só mais esta colher, esta é a colher do carro do pai, come só mais esta que é um avião”, detestava estes momentos, pois impediam-me de aproveitar todos os minutinhos do dia nas brincadeiras.
Terminada a tortura corria para a casa da minha amiga de brincadeiras para a ir chamar, artilhada com sacos, sacolas, pinturas, cadeiras, tachos e pratinhos de plástico, tudo e mais alguma coisa para encarnar a pele de uma senhora adulta.
Na época entre a minha casa e a da minha amiga havia um terreno sem habitações, era lá que montávamos o cenário de horas de teatradas.
Na altura as crianças tinham toda a liberdade para brincarem na rua, não havia os perigos dos dias de hoje. Praticamente não havia transito, de raptores de crianças não se ouvia falar e as crianças tinham mais independência para cair, saltar, suar, esmurrar os joelhos, acreditava-se que as lágrimas das quedas faziam parte de um crescimento saudável.
O sol batia-nos na cara, o som dos passarinhos acompanhava-nos.
Na Primavera era habitual ficar cheia de pintas, devido ao pólen, andava constantemente cheia de betadine e mercúrio, mas não havia tempo para lamechices.
As tardes eram passadas com as crianças todas da rua, e nessa altura eram muitas, encontrávamo-nos logo a seguir ao almoço cada uma com a sua bicicleta, a que eu utilizava era a da minha irmã toda feminina, com cestinho e tudo, azul, com uma campainha que eu fazia questão de tocar, sempre que a minha irmã estava distraída lá ia eu à socapa dar umas voltas. Pedalávamos horas pela aldeia por entre campos e montes, na correria para irmos na linha da frente e chegarmos rápido à nossa pista - um monte de terra com subidas e descidas acentuadas.
Ficávamos douradinhas pelo sol e a obesidade não se aproximava de nós, apesar da doçaria que comíamos: eram Bombocas, as Gorila (duras como pedras), chupa chupas que tinham como brinde umas espadinhas e martelinhos… que guardávamos como se de um tesouro se tratasse, no Verão lá comíamos os Cornetos de kiwi e de limão, os Perna de Pau e os Epá, os bolinhos Dancake que também traziam brindes, e as bolachas Maria que existiam em todas as casas, molhadas no leite eram uma maravilha.






Brincávamos aos polícias e ladrões, aos cowboys, com as Barbies, com as Barriguitas, com Chorões, com Póneis, às Cartas, ao Esconde, com o Quem é Quem, Tartarugas Nina e afins, de quando em vez até com os carrinhos dos rapazes brincávamos, e quando não havia brinquedos inventávamos jogos onde as regras, geralmente, eram ditadas pelos mais velhos, os reis da pequenada.

Fazíamos concursos de música, quais Ídolos qual quê, o que mais se cantava eram êxitos dos maravilhosos Onda Star ou Onda Choque.
Nos finais das tardes lá íamos para casa bem cansadinhos, prontos para o Caderno Diário, onde ficávamos agarrados à televisão para ver: o Babar, o Bocas, o Tom Sawyer, o Popeye, o Panda Tao Tao, a Ana dos Cabelos Ruivos, os 3 Mosqueteiros e mais tarde o D’ Artacão e os 3 Moscãoteiros, a Arca de Noé com a inesquecível música:

 "Vamos fazer amigos entre os animais que amigos destes não são demais na vida
E vêm aqui mostrar que têm uma família como eu e tu
Só que esta mora numa outra casa que se chama (digam) Arca de Noé"


Aí a nossa imaginação voava para o reino da fantasia. Não tínhamos grande tecnologia, mais tarde foram aparecendo os Game Boy, mas só os mais afortunados tinham. Existiam, ainda, as máquinas de jogos nos cafés, mas isso eram brincadeiras de rapazes, para além de termos de colocar moedas, coisa que nos nossos pequenos bolsos não existiam, e as raras vezes que lá paravam, eram para ser gastas em docinhos. Não existiam computadores, nem telemóveis, éramos crianças diferentes das de hoje, como dizem alguns não tão estimuladas e astutas, éramos simples, livres e muito felizes.


À noite lá víamos o Vitinho – o nosso amiguinho, que à sua chegada na Televisão despertava em nós um sono tal, que imediatamente nos levava para a terra dos sonhos.


Os anos foram passando e o que outrora eram momentos normais na vida de qualquer criança, agora são raros na vida daqueles que ainda se encontram na idade da inocência, tudo mudou, as ruas ficaram desertas do som da brincadeira dos mais pequenos, das risadas e das correrias, até já me perguntei se na minha rua já não existem crianças.



Avó


Cabelo branco, pele morena, baixa estatura, mãos cansadas com as veias salientes marcadas por anos de existência, olhar escuro cheio de ternura, vestes, quase sempre, negras - marca de uma vida cheia de estradas com muitas curvas, assim é a minha avó.
Senhora feita de uma matéria que já não se fabrica nos dias de hoje. Encarou sempre a sua vida com garra e coragem. Determinada a dar felicidade aos seus, nunca se preocupou muito com a sua, nela não existe nada de egocentrismo e as réstias que podia ter de tal sentimento foram-se perdendo em cada parto que teve (e foram muitos).
Criada sem pai, conheceu as agruras da vida muito cedo, como ela muitas vezes diz: “comi o pão que o diabo amassou”, e muitas vezes nem o pão amassado pelo diabo tinha. Uma infância passada nos tempos em que em Portugal se passava fome, muita fome, os primeiros sapatos que teve, segundo ela, “eram uns socos lindos, de um verniz muito brilhante, no dia em que a minha mãe mos deu, não consegui parar de olhar para eles e até dormiram comigo, não os usava nos pés porque não os queria gastar”.
Saí a ela na minha gulosice, que adora açúcar. Nos tempos da sua infância não existiam doces, ou melhor ela não os conhecia, bolos nunca os provou em pequena, nem rebuçados, nem nada que se parecesse, apenas o mel usado para fazer os “mexidos” no Natal e o “sarrabulho”.
Começou a trabalhar mal terminou a antiga 3.ª Classe, e o que mais me espanta é que escreve muito bem, sem dar um único erro ortográfico, como a visão já teve dias melhores tem alguma dificuldade em ler ao perto.
Lá do alto dos seus quase 80 anos tem um brilho no olhar que muita gente com um terço da sua idade não possui.
A minha infância foi passada com a sua companhia diária, muito me ensinou, tinha sempre uma história para me contar como exemplo para me ensinar isto ou aquilo, sempre adorei ouvi-la falar “dos seus tempos”, que na minha cabeça criavam filmes com sons, aromas, cores, emoções. Muitas das histórias pareciam retiradas de uma qualquer novela ficcionada. Foram incontáveis e indescritíveis os momentos que eu criei ao som da sua voz.
Num cem número de traquinices nunca me castigou, ou sequer foi severa comigo, era o meu porto de abrigo nos meus momentos de tristeza, sempre com um sorriso de ternura.
Os anos vão passando e tem-me perseguido um medo aparentemente infundado mas que me tem consumido, o dia em que as pessoas que amo deixem de estar na minha vida.
Tenho pensado muito nisso, nunca tanto como agora, sei que se deve viver cada momento como se fosse o último, aproveitando cada dia, mas mesmo seguindo a preceito o ensinamento a falta vai continuar, os dias vão seguir, os lugares vão ficar vazios, e as saudades vão ser imensas e destruidoras. Porque é que as pessoas fabulosas não vivem para sempre de corpo e alma e não apenas no nosso coração?