Reconheço a sua espécie de assobio, esteja onde estiver, sinto o seu
timbre, a sua musicalidade, decifro o seu estado de espirito a qualquer
instante.
O seu jeito de caminhar, com os braços cruzados, ou com as mãozinhas nos
bolsos.
Como que um odor presente em mim, o cheiro do meu pai é incomparável,
pergunto-me se esse sentimento virá dos tempos em que repousava no berço.
Gostava que esse perfume me acompanhasse sempre, para que a segurança
caminhasse lado a lado, amarrada às minhas passadas.
Segundo a minha mãe foi ele quem me ensinou a dar os primeiros passos, o
que tem a sua graça, pois ainda hoje continua a segurar-me os braços e a encaminhar-me
para as diversas estradas da vida.
Fecho os olhos e sinto-o a pegar-me às cavalitas e a colocar-me na cama,
junto com a minha irmã, a tapar-me com cuidado. Renasce em mim o calor da
proteção, das noites tranquilas da infância, em que a única preocupação era
encontrar nos sonhos as princesas da imaginação.
Sinto o vento quente a bater-me na cara, e a alegria de andar de mota,
sentada entre os seus braços, com as pernitas encostadas ao depósito de uma Casal
2, qual pássaro azul a voar pelos oceanos, experimento novamente a sensação de
planar pelo sol quente de Verão.
Encosto-me ao seu ombro e revejo-o a tratar-me cuidadosamente das
inúmeras feridas, resultado de incontáveis quedas. Esteve sempre lá para me levantar,
munido de Betadine, Mercúrio, álcool e o suave algodão, apetrechos que sempre o
acompanharam, o meu enfermeiro 24 horas, sem feriados, férias, dias santos ou
folgas.
Desde sempre fui intolerante à dor, qualquer picada de inseto era motivo
de uma enorme gritaria, e o que eu sofri com dores de ossos. As noites eram
intermináveis pesadelos, como não tinha o que me distraísse, gritava com toda a
força, com a boca bem aberta (e não era pequena), calmamente o meu pai
massajava-me o corpo com pomadas, pomadinhas e uma panóplia de mesinhas, que me
ajudavam a serenar a dor.
Ainda o oiço nas cantorias matinais de Domingo, a toda a força imitava o
Pavarotti, o que me enervava aquele ruidoso despertador, e o que me apertam as
saudades da sua sonante alegria que agora relembro.
A expressão facial quando se enerva ainda continua a mesma, basta olhar
para ele que sei exatamente quando algo o incomoda.
Quando era miúda, adorava as caixas de bolachas sortidas, principalmente
as embrulhadas em papelinhos de prata coloridos, era capaz de me sentar ao lado
da caixa e só terminar quando acabassem todas, ignorando se os outros teriam a
hipótese de as saborear. Bastava olhar para a sua expressão que descodificava
logo a mensagem, nunca percebi como é que ele fazia aquilo, pois eu era
efetivamente uma traquinas, sem grandes fitas, eu parava com as atitudes menos
próprias. Nesse ponto acho que o meu pai poderia dar formação aos papás de
hoje, que deixam as suas crias a berrar desalmadamente e fazem asneiras debaixo
das suas barbas, sem mexerem uma palhinha que seja.
As saudades que eu tenho de lhe sentir a mão tocar no alto da minha
cabeça, e a agarrar-me o ombro para acalmar, as saudades que tenho dos anos em que
muitos faltavam para viver sob a sua mão que me amparava todas as quedas.