Se as pedras falassem o que teriam para nos dizer? Quais as
emoções que nelas poderíamos encontrar? Teriam segredos recônditos? O que nelas
realmente existe?
Sei que existo porque sinto as
alegrias, as dores, as emoções, mas julgo que ninguém sabe que aqui estou.
Desde que me conheço como pedra
que estou aqui nesta rua de calçada portuguesa, como lhe chamam os que por aqui
passam. Mas nem sempre me sinto portuguesa: não posso falar a língua de Camões,
não posso comer o cozido à portuguesa (que dizem que é muito bom!). O que será
o sabor? Enfim, nunca o saberei… Não posso votar em partidos políticos, não sei
o que são férias, não posso gritar, não posso rir, muito menos chorar …e tantas
vezes me apetece!
Mas sirvo para me pisarem, todos os dias…
De manhã, já estou habituada ao
frenesim do caminho para a escola das crianças, dos pais a correrem para os
trabalhos, das mulheres que se arranjam todas, para ver se é nesse dia que
encontram alguém que goste delas, dos homens que vão descobrir se é nesse dia
que encontram a liberdade.
O que me sufoca são os viciados,
que teimam em atirar-me uns cigarros queimados e, como se não bastasse, ainda os esmagam em cima de mim. Não sabem
que também me preocupo com a aparência, que apesar de ser preta e escura tenho
alma, sou diferente apenas na cor, porque sou igual às pedras brancas, às cor-de-rosa,
e até às amarelas.
São uns egoístas, sem coração!
Sei que estou a ficar gasta,
porque não sou da mesma altura das pedras que estão ao meu lado e, em breve,
serei substituída, mas por enquanto ainda aqui estou e cumpro a minha função
como as mais novas.
E mesmo quando nas tardes quentes
de Verão me bate o sol, horas e horas seguidas, eu tenho de aqui estar e tento
não me queixar, dizem que é mau ser uma queixinhas e então guardo tudo para mim!
Às vezes deveria ser diferente e
colocar-me em posição de fazer cair a Maria, que com os seus saltos altos me
pisa, e mostra a perna e o que está no fim dela ao Francisco, marido da sua
melhor amiga, e nem se incomoda comigo, todos os dias às 2 horas da tarde aqui
se encontra com ele. Mas nunca consigo ser assim má!
Quando chega a noite, tudo muda: aparecem
uns cães vadios à procura de restos; às vezes tenho a sorte de não levar com a
sua urina e já me sinto um pouco feliz mas, outras vezes, fico encharcada toda
a noite, sem poder fazer nada!
Quando chega o Manuel, e não está
bêbado e adormece, é uma alegria porque fala comigo, conta-me as suas histórias
de quando era criança, tinha pais, tinha felicidade…. E até me diz que sou a
sua única amiga, o que me dá uma certa alegria, e o mais engraçado é que me
quer levar com ele quando morrer, mas não sei se acredito nisso, porque ninguém
me vai tirar daqui por causa dele, e até duvido que alguém o leve para outro
lugar, ninguém repara que está aqui, acho que poucos sabem da sua existência,
no Natal, ainda aparecem cá umas vozinhas simpáticas com conversas da treta e
até lhe dão comida e cobertores, mas ao longo do ano ninguém lhe diz nada.
O Manuel para mim é um senhor,
gosta das estrelas, do sol… só fala contra o frio, mas sem grande revolta, diz
que o que em tempos viveu lhe encheu a alma e vive de lembranças do passado.
Quem me dera ser assim…
Espera… qualquer coisa está a
acontecer ao fundo da rua… estão a arrancar as outras pedras… e eu? Ai para
onde vou?
Eu não sei se quero ir aí?
Por favor quero pensar nisso, eu
já estou habituada… e o Manuel? Sou a sua única amiga.
Eu sou desta rua, eu sou daqui,
conheço esta gente, a minha função é aqui… não, não me levem, por favor
oiçam-me só desta vez…
Conheço estes sons, o cheiro
desta rua, as gentes desta terra, conheço o sentir, as palavras, as expressões,
os hábitos… Sou preta, sou velha mas sou daqui desta rua de Portugal, faço
parte desta história, não quero ir para outro país, ou outra terra, ou outro
lugar, não me obriguem a ir embora, não, não me levem eu quero estar aqui, eu
sou daqui, eu quero morrer aqui, eu quero morrer com esta terra e neste lugar…
Manuel…